terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O entre-espaço da criação

Por Liana Gesteira


Três semanas intensas de trabalho criativo e trocas artísticas. Assim aconteceu o Atelier de Criação [1] uma das atividades do projeto “Articulações – Corps en Temps”, realizado em Recife em outubro deste ano, dentro da programação do ano da França no Brasil (http://articulacoesblog.blogspot.com). Após um mês de terminado o Atelier, retomo minhas reflexões sobre essa experiência, para escrever um texto. Uma tentativa de articular o olhar de dentro e de fora, como participante e observadora.

Essa escrita se configura como uma continuidade dos exercícios do Atelier de Criação, e não uma outra ação, pois segue a reflexão sobre a construção de uma cena, de uma performance, explorando o limite entre público e cena, espectador e performer, observador e praticante. Foram vários exercícios do estar “dentro e fora” ao longo das oficinas. E nesse jogo me deparei com a potencialidade do “entre”. Esse espaço-tempo não dicotômico, de onde a criação parece emergir.

Ao vivenciar a autonomia de me colocar ora como espectadora e ora como performer durante os exercícios de criação do Atelier, percebi que este mecanismo nos leva a uma reflexão mais consistente do fazer. O meu olhar era uma extensão da cena, e a liberdade para interferir na composição estimulava meu potencial criativo. A rapidez do jogo me levava a trilhar caminhos diferenciados dos meus padrões e a arriscar muito mais em minhas proposições. Um trabalho de hiperestimulação das percepções (sobre o outro, o espaço, o movimento, os sons, o tempo, etc) que precisavam de muita afinação para encontrar denominador comum. E nessa experiência me percebi re-situada artisticamente, alimentada por novas ferramentas de criação, a partir dessa perspectiva do entre-espaço.

Instigado por esse assunto, João Lima [2] me trouxe a referência do Anel de Moebius. Uma figura que nos traz um corpo que não contém o exterior e o interior definidos, é uma superfície em contínuo infinito. E talvez seja a concretização geométrica da perspectiva de algo “entre”, esse espaço comum de negociação do olhar crítico com a composição, do performer com o espectador, do estado consciente e inconsciente da criação. Uma perspectiva que muito me interessa pela minha atuação como artista intérprete e como pesquisadora e crítica de dança. A descoberta de um lugar comum entre esses dois papéis, me traz uma importante possibilidade de diálogo para uma criação.

E no espaço-tempo entre o Atelier e o presente texto me deparei com novos estímulos para pensar essa relação. Um deles foi o artigo “Inter-ações Intersticiais – o espaço do corpo do espaço do corpo” de Ciane Fernandes [3], que me fez revisitar algumas questões ao discutir “o Espaço da Performance como um interstício relacional entre diferenças”. Em um dos trechos do seu texto Ciane traz o pensamento de Gleiser [4], que coloca “o intervalo entre as diferenças como potencialidade criativo, um espaço do devir” (1997:327).

Essa fronteira tênue entre o público e o intérprete em uma performance, ou espetáculo, se apresenta como um território fértil para a composição de uma cena. A tensão latente entre esses espaços (o dentro e o fora) provoca caminhos interessantes para a elaboração artística. E uma questão que tem permeado minhas inquietações é justamente essa relação da obra e do público. Como artista me importa pensar no espectador na hora da criação? Se sim, como pensar o diálogo com o público durante o processo de elaboração da cena? Após refletir sobre o fluxo desse espaço relacional, fica mais claro aceitar que uma criação é fruto de um desejo do artista mas que inevitavelmente criará alguma relação com o espectador. Seja esta, inclusive, de não se relacionar com ele.

E sobre esse tema me deparei com outro ponto do artigo de Ciane, onde ela cita Maria Pia [5}. “A platéia é quinta musculatura do ator. É comum ver atores `fazendo força` para prender atenção na ilusão de que a platéia é algo fora dele. A quinta musculatura fala de sincronia, comunicação, do outro, aquilo que está fora de nós, mas passa a ser um desmembramento nosso quando existe o elo de comunicação[...] O chão que pisamos é nossa quinta musculatura, assim como a roupa que vestimos. Outra pessoa passa a ser parte de nós quando existe uma troca entre dois `Eus` que se afinam e reconhecem no outro os mesmos sentimentos que existem no próprio `Eu`. (PIA,17).”.

Pensar no público como mais um elemento dramatúrgico se apresenta, portanto, como uma reflexão interessante para a composição cênica. A estratégia de re-situar essa perspectiva dicotômica do dentro e fora, sem colocá-los em oposição, mas sim em relação, traz novas possibilidades de trabalhar. Se colocar nesse entre-espaço durante o processo criativo leva a outros territórios, que me parecem férteis para o fazer artístico.

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Referências

[1] O Atelier de Criação fez parte do projeto “Articulações – Corps en Temps”, realizado em Recife, entre os dias 14 e 31 de outubro, dentro da programação do ano da França no Brasil. Foram três semanas de oficinas guiadas pelo português Nuno Bizarro, pelo francês Johann Mateus e pelo brasileiro João lima.

[2] João Lima foi coordenador do projeto “Articulações– Corps em Temps” e atualmente desenvolve pesquisa coreográfica para o programa Itaú Rumos Dança. (http://www.outrodoutro.wordpress.com)

[3] FERNADES, Ciane. Inter-ações Intersticiais: o espaço do corpo do espaço do corpo. In: MEDEIROS, Maria Beatriz; MONTEIRO, Marianna F.M.(org). Espaço e Performance. Brasília: Editora da Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília, 2007.

[4] GLEISER, Marcelo. A dança do universo: dos mitos de criação ao Big Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[5] PIA, Maria. O Tao do Corpo. In Cadernos de teatro, n.131 (1992), 14-18.


* Liana Gesteira é dançarina, integrante da Cia Etc e do Coletivo Lugar Comum, e coordenadora/pesquisadora do Acervo RecorDança.